16 de novembro de 2005
O Fisco e o contribuinte
A imprensa noticiou, com relevo, recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que, julgando inconstitucional artigo de lei que ampliara a base de cálculo do PIS e da Cofins, levaria a União a devolver R$ 27 bilhões a contribuintes. Faz pouco, em parecer, opinei exatamente no sentido do aludido julgado, mas, é claro, não vou ocupar-me do mérito da questão, mas de outro aspecto, também interessante. O caso que me parece digno de nota pode ser resumido em duas palavras. Se a União terá de devolver R$ 27 bilhões é porque cobrou indevidamente R$ 27 bilhões, senão mais. Este o caso em sua transparência irrefutável.
Sempre entendi que o tributo, seja de que espécie for, há de ser legalmente instituído e pago na forma da lei. O tributo é uma obrigação legal e como tal deve ser satisfeita, ainda que possa não ser agradável ou acertada. Por isso mesmo, na medida em que representa uma porção pecuniária retirada, coercitivamente, do patrimônio do contribuinte, deve o Fisco ser atento, para não dizer criterioso, no exercício do imenso poder que lhe é deferido por lei. Exigir um tributo, seja ele qual for, sem base legal, constitui insigne abuso, abuso no poder de tributar, e configura lesão na pessoa do contribuinte, que pode ser enorme, seja no número de pessoas atingidas, seja no quantitativo de que seja privado. E o Estado, ou o Fisco ou que outro nome tenha, não pode locupletar-se com o alheio. Já não falo na falta de correspondência entre o arrecadado pelo poder público e o que por ele é devolvido à sociedade em serviços, fato que vai ganhando relevo no cotidiano das pessoas, pelas circunstâncias até ignominiosas que podem revelar-se.
O fato de o serviço da dívida pública ser escandalosamente elevado e oficialmente alimentado pelo juro decretado clama aos céus, quando os serviços públicos essenciais são notoriamente defectivos. Mas na hipótese vertente o abuso não está na falta de proporcionalidade entre o arrecadado e o prestado, mas na ilegalidade da exigência, ou seja, a obrigação legal por ser tributária e tributária por ser supostamente legal veio a ser fulminada exatamente por não ser legal e, o que é mais grave, pelo fato de ser a ilegalidade em seu grau mais intenso, ou mais conspícuo, como diria o saudoso Ministro Orozimbo Nonato: a inconstitucionalidade é a ilegalidade máxima. E o Estado, com sua enorme parafernália, impõe suas garras anos a fio, a ponto de ver-se agora, e por fim, na contingência de ter de devolver R$ 27 bilhões dos quais se apossara ilegalmente e contra a lei das leis. E isto é grave, é muito grave, em uma sociedade organizada. Porque a ilegalidade tisna a autoridade que a comete, e a tosquia que ela permite seja praticada nas pessoas, fere e humilha as vítimas.
Como se pode apreciar o procedimento da autoridade que usa do poder do Estado para exigir do cidadão ou do contribuinte um falso tributo, falso porque indevido, indevido porque ilegal, ilegal porque contrário à Constituição? Parece que a pessoa é tratada com solene indiferença, senão com descaso e desrespeito e olímpico desdém, e enquanto isso é constrangida a esperar anos até que venha a ser liberada por decisão do mais alto tribunal da República.
O abuso de poder, impunemente cometido, se converte em estímulo à sua reiteração e leva à desconfiança dos supostos destinatários da ação estatal. Houve tempo em que se dizia in dubio contra fiscum. Se não estou em erro, hoje prevalece idéia contrária, na dúvida contra o contribuinte, e não falta quem estabeleça a sinonímia entre contribuinte e sonegador.
De qualquer sorte, a decisão do Supremo Tribunal Federal é de particular importância teórica e relevantes efeitos práticos. Restaria agora indagar o que pensam os publicanos.
O autor é jurista, foi deputado federal e senador pelo Rio Grande do Sul, ministro da Justiça e ministro do Supremo Tribunal Federal.
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